segunda-feira, 1 de julho de 2013

Curiosidade zoológica

Acontece em todo o lado, não é só em Portugal. Gente confortável, de vida confortável, com empregos confortáveis, provindos de família confortável de quem herdaram a casa, a conta bancária, as boas maneiras, o sotaque, gente que se pode reclinar na sua poltrona confortável, olhar pela janela, olhar o trânsito da Avenida de Roma ou Estados Unidos da América ou qualquer outra avenida em qualquer outra parte do mundo e observar tudo com a curiosidade de uma criança no jardim zoológico, o mundo lá fora, os pobres, os autocarros com pobres, a entrada cavernosa do metro, nestes dias de calor deve cheirar tão mal,  e no entanto os pobres lá andam na sua vida, não quer dizer que sejam más pessoas, nasceram assim, sempre existiram, sempre hão-de existir. Servem para alimentar a curiosidade zoológica da gente confortável, que nunca se espanta com a miséria dos outros. Talvez a lamente, mas nunca se espanta, a miséria sempre existiu, sempre continuará a existir, há pessoas assim, pessoas muito coitadas, que servem para a gente fazer alguma caridade, porque devemos sempre um pobre de estimação, como as tias do Lobo Antunes ("eu sou o pobre da menina Teresinha"), e às vezes até se pode dar emprego aos pobres, precisa-se de uma empregada e os pobres estão lá, precisa-se de um taxista e os pobres estão lá, precisa-se de um secretário e os recém-licenciados pobres estão lá, a estes podemos pagar 700 euros que para eles já é muito e até agradecem, mas nunca por nunca aceitaremos uma miséria destas para os nossos filhos.
Há muitos anos, tinha uma amiga indiana, que entretanto desapareceu da minha vida. Não faço ideia do que está hoje a fazer nem se voltou para a Índia. Ela era Brahmin e os pais davam trabalho a alguns "intocáveis" lá na casa deles, jardinagem, limpezas, etc. Uma das intocáveis roubou uma coisa e os pais da minha amiga descobriram. Não despediram a senhora, mas fizeram-na pagar o valor do que tinha roubado em prestações. "De outra forma, se a despedíssemos, o que ia ela fazer? É que eles são mesmo pobres", explicava a minha amiga. E encolhia os ombros, como se a coisa mais normal do mundo fosse existir gente "mesmo pobre", intocável de tão miserável. 
Acontece em todo o lado. 

1 comentário:

a.i. disse...

descobri o teu blog pela Wallis do Acto Contínuo e agora estava a ler o jornal e lembrei-me de ter lido aqui este teu post.
é esta notícia:
http://www.publico.pt/mundo/noticia/homem-mais-rico-da-china-diz-nao-que-reduzir-desigualdades-nao-e-prioridade-1600479