segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Problemática do pijama e seus derivados

Tenho um problema com uma peça de roupa em particular, e que é "o" pijama. Nunca acerto com pijamas. Só os encontro grandes demais, ou pequenos demais, bonitos demais, ou feios demais, caros demais, ou baratos demais. Nunca encontro pijamas com conta, peso e medida. São sempre desmesurados. É um tormento. Passo noites em grande desconforto, ainda por cima agora, que está frio, o saco de água quente esfria, e lá fico eu apertada na camisolinha fina demais, ou a nadar no camisolão, tão distante da minha pele que não aquece.
No fundo, não era nada disto que eu queria falar. Queria apenas uma oportunidade para me referir a peças de roupa como no catálogo da La Redoute - "o" pijama, "a" bota, "a" camisola, "o" camisolão" e (esta é a minha preferida), "a calça".
Se há hábito linguístico que não me agrada é este último - dizer "a calça" ao invés de "as calças". Umas calças têm duas pernas. Eu acho que se deve dizer "as calças".
Para rematar e para concluir "o" post perfeitamente inútil, apenas relevar que eu, ao contrário de todas as outras pessoas que disso se queixam, gosto bastante de receber o pijama como prenda de Natal. Também não me importo se me oferecerem a quente pantufa. E já agora o fofo roupão. É isto.

Post clubístico


Sempre achei que Soren Kierkegaard era um homem com muitas coisas interessantes e acertadas sobre a vida, nomeadamente no que respeita à multidão e às massas. Segundo Kierkegaard, a verdade não está na multidão, mas sim no indivíduo - a multidão mente.
Humildemente, concordo com Kierkegaard. Concordo, mas com limites. Há alturas em que a multidão não mente, e tenho um exemplo muito claro - o jogo de ontem, Benfica vs Porto, no Estádio da Luz. Foi todo um ritual que muito aprecio - cachecol vermelho ao pescoço, estádio, "SLB, SLB, SLB" em uníssono, golo aos vinte e tal minutos, euforia, bife à Portugália no fim.
Quando estas actividades ritualísticas e em massa terminaram, e quando finalmente me vi livre da multidão, senti-me muito bem e muito reconfortada. Embora seja sempre fundamental regressar ao colo da nossa solidão, há momentos em que a multidão não mente. De vez em quando, lembra-se de dizer a verdade.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Rebelde ma non troppo, a bem da moral, ó faxavôr

No Reino Unido, há uma campanha, com grupo no facebook e tudo, que tenta que Killing in the Name, dos grande Rage Against the Machine, seja o número 1 de downloads do Natal, ao invés da cançãozita do palerma anódino qualquer que ganhou o X-Factor, convenientemente, nestas últimas semanas, em que anda tudo a gastar o salário em prendas.
Os Rage gravaram uma entrevista para a BBC, sessão onde também tocaram Killing in the Name, que já é dos anos 90. Acontece que esta música termina com um repetido "fuck you, I won't do what you tell me", rebeldia que a BBC considerou ser um bocadinho, digamos que , despropositada (segundo a tola da locutora, "nós tínhamos pedido à banda para não dizer isto!", pegando depois do seu chinelo de salto alto para lhes dar tau-tau). É assim, uns lutam pelo direito à ofensa, outros, como a estimada BBC, tentam poupar os nossos delicados ouvidos à dita ofensa.
De qualquer forma, os Rage Against the Machine já fizeram saber que ficam muito felizes por ter sido a sua música a escolhida para, de alguma forma, combater a piroseira comercialona e vazia que é a música "pop" dos dias de hoje, Mariahs Careys e quejandos (sinceramente, não me consigo lembrar de tipa com menos dignidade e valor para a música do que esta Mariah Carey. Consegue ser pior que a Celine Dion, outra cidadã de voz retinta cheia de fru-frus exagerados que até arrepiam de medo). Disse o guitarrista Tom Morello (que, a solo, tem um disquinho muito interessante, The Nightwatchman):

...the internet campaign "tapped into the silent majority of the people in the UK who are tired of being spoon-fed one schmaltzy ballad after another". (tirado daqui)

Não só no Reino Unido, diria eu. O que acontece é que, em Portugal, o top de singles e discos (mesmo o de downloads), que é o caso aqui, é indiferente a quase todos, ao passo que em Inglaterra ainda mantém a notoriedade, de modo que conseguir levar uma canção como Killing in the Name ao topo assume uma relevância que cá, provavelmente, não teria.
Apesar de os Rage Against serem também uma banda que precisa, e com certeza quer, promoção e dinheiro, nunca enriqueceram de forma absurda (tanto quanto sei), mantiveram sempre uma faceta clara de rebeldia e optaram por um percurso mais underground, menos exposto, do seu trabalho. Gostei de saber desta iniciativa de levar ao número 1 o Killing in the Name, com o seu veio quase violento, anti-Establishment, para derrotar nos tops a músiquinha anódina, produzida em série e empacotada, que normalmente se consome.
Espero que o Killing in the Name ganhe. Deixo aqui o vídeo de os Range censurados pela BBC. É apreciar.

Dizer não ao feio

Depois de uma semana um tanto ou quanto desconcertante e muito dificultosa, em primeiro lugar devido ao muito trabalho, em segundo lugar devido à situação desconcertante com o tremor de terra (que me fez acordar espavorida, a pensar que era o Exorcista a sacudir-me a cama ("the power of Christ compels you! the power of Christ compels you!"), mas não, afinal era só um sismo. Aliás, foi isso mesmo que eu pensei - "ah, não é nada o Exorcista, é só um terramoto. Volta a dormir, que está tudo bem". E adormeci mesmo), dizia, depois desta semana, chego à conclusão de que o Natal é já para a semana e que os Pais-Natal nas varandas são terrivelmente feios. Por acaso, concordo com aquela campanha do Menino Jesus, bem mais bonito e fofinho, como se quer no Natal.
Toda esta problemática esteticamente reprovável do boneco do Pai-Natal pendurado na varanda fez-me lembrar outras coisas igualmente reprováveis, como roupa pendurada na janela. Tenho um único vizinho que faz isto, quando todas as outras pessoas secam a roupa na varanda, ou em casa, ou sei lá onde elas secam, secam nalgum lado que eu não sou obrigada a ver. Este vizinho, que ainda por cima não vive nos andares mais altos, deixa as cuecas todas ao léu, os lençóis de flanela, as camisolas, tudo ali despudoradamente exposto, a secar sem quaisquer pruridos. É extremamente feio.
O que me conduz a uma questão que decorre directamente desta. Toda a gente tem o direito de se ofender por tudo e por nada e, hoje em dia, toda a gente se habituou ao seu direito de ser ouvida e considerada na sua ofensa, ainda que esta seja completamente indiferente e não interesse a ninguém (nem ao tal Menino Jesus, rival do Pai Natal). Portanto, eu estou aqui para me insurgir e para me ofender contra aquilo que eu acho ser feio, esteticamente inaceitável, ofensivo para os meus pobres olhos.
Boneco do Pai-Natal na janela.
Roupa pendurada na janela.
Bebés com as orelhas furadas.
Bebés com pulseiras.
Bebés com qualquer tipo de jóia ou fita no cabelo (cabeça, porque cabelo eles não têm muito, ainda por cima).
Vivendas geminadas.
Jardins de vivendas com fontes, ou estátuas de meninas, meninos, leões, enfim, todo o tipo de estátua.
Descampados.
Prédios sem varandas.
Martim Moniz (a zona de Lisboa, não o senhor, coitado).
A voz do Eduardo de Sá (peço desculpa a quem tem este senhor em consideração, mas para mim não dá).
Eucaliptos vistos da autoestrada.
Salas com azulejo até meio da parede, e depois parede de estuque até cima.
Quadros da Última Ceia.
Aquelas caixas esquisitas que servem para guardar o pão e que as pessoas às vezes têm na cozinha.

Eu podia continuar. Mas é Natal e prefiro tentar algum optimismo.
No entanto, levanto a questão de lançar um abaixo-assinado contra a estética ofensiva, já que os nossos olhos merecem algum refrigério e motivos para sorrir.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Imperfeições.

Gosto de imperfeições. Acho que as imperfeições são ainda mais bonitas do que a perfeição, porque exigem atenção ao pormenor, exigem conhecimento atento de qualquer coisa ou de alguém.
Capelas Imperfeitas.
Dentes tortos.
Sinais.
Narizes grandes.
A Vénus de Milo sem braços.
Um olhar ligeiramente estrábico.
Cabelos quase espigados.
Pessoas quase gordas (gordura é formosura).
Singularidades de raparigas (louras ou não).
Corvos, desajeitados e anafados em terra, mas daquele negro brilhante quando voam.
A mão demasiadamente grande do discípulo à esquerda de Jesus Cristo, na Ceia em Emaús, de Caravaggio.
As unhas sujas de Baco, no quadro de Caravaggio.
Caravaggio é o pintor da imperfeição, para mim (eu, que sou assim super especialista em pintura). Adoro este indivíduo.


A imperfeição é mesmo uma perfeição, não é? Eu acho que sim.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Pessoa-cão

Costuma dizer-se que há pessoas-cão e pessoas-gato, dependendo do animal de estimação que preferem.
Não tendo nada contra gatos, que têm a sua piada, eu gosto principalmente de cães. Deixo aqui dois exemplos de cães, um francês e outro português, sem os quais não gostava nada de ficar, pois são muito bons cães.




Que queridos.

Olá, o meu nome é Rita e sou viciada


Ainda por cima com mais do que idade para ter juízo. O que, lamentavelmente e como se demonstra, não tenho.
Que vergonha.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Arrumações


Vou hoje começar uma tarefa épica, e que é re-organizar e re-arrumar a minha estante. O problema é que, neste momento, a estante é um mar de incongruências que me enervam, porque não gosto de ver livros em locais onde eles não fazem sentido. Por exemplo, tenho o Livro de Cesário Verde junto de umas edições muito foleiras do Guerra e Paz, daquelas da Europa-América com uma fotografia na capa de uma série de televisão dos anos 80 manhosa, e provavelmente com o texto traduzido do francês. É atroz, é um desrespeito para o Cesário e além disso dificulta-me a vida, porque, apesar de a minha estante não ser assim tão grande, não consigo encontrar os livros que quero com a eficiência necessária (noutro dia, por exemplo, até pensei que tinha perdido a Filosofia da Alcova do grande Marquês de Sade, e eu que gosto tanto do Divino Marquês, apenas para descobrir que não, afinal estava para lá metido entre as irmãs Brontë e o Shakespeare - embora, pensando nisso, talvez até faça algum sentido. Tenho ideia de que o Marquês de Sade apreciaria as malucas das irmãzinhas Brontë, se as tivesse conhecido).
De modo que decidi mudar esta grave situação, começar de novo e re-organizar a estante. Sinto-me um verdadeiro John Cusack no Alta Fidelidade (no caso dele, eram discos), e estou agora a ponderar os critérios que deverão presidir à re-organização dos livros. John Cusack optou pelo critério autobiográfico, que, em princípio, vai ser o critério que eu vou seguir também. Em vez de arrumar livros por género literário, vou socializar com os meus livros e arrumá-los pela ordem em que eles entraram na minha vida. Parece-me uma coisa muito acertada, não obstante ter perdido e emprestado livros importantíssimos. Mas isso também faz parte dos livros, perderem-se, emprestarem-se, andarem de mão em mão como as pombinhas da Catrina.
Acho que vou deixar espaços vazios na estante para os livros que perdi. Não tenho pena, porque sei que eles andam por aí.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Com uns pós modernos nada complicados sentimo-nos realizados

Devo dizer que, não sendo uma pessoa assim de se dar, e nunca podendo, portanto, proceder ao engate nos termos em que o brilhante Variações o descreve ("um momento em que me dou, em que te dás" - pois, isto para mim não dá, mesmo), continuando, não sendo uma pessoa de me dar, esta minha característica anti-social horrível e triste transparece nas chamadas redes sociais, em que o conceito de "networking", talvez um daqueles que mais abomino e, confesso, pelo qual tenho até um certo desprezo, assume uma importância fundamental. Mormente no facebook.
Dantes não gostava do facebook, mas agora até gosto. Gosto especialmente da parte em que podemos pôr notas, porque eu nunca fui organizada o suficiente para ter um caderninho com poemas e textos de que gosto, e o facebook dá-me a oportunidade de o fazer, com a vantagem de que os amigos podem ver, comentar e discutir ideias comigo, se também gostarem, ou não, daquilo que eu publico lá. Gera-se uma espécie de converseta de café, que é das conversetas que eu mais aprecio nesta vida. No entanto, desconheço por completo as regras de etiqueta do facebook, o que é coisa que me agasta, porque eu, além de ser uma pessoa com a faceta horrível do anti-social, também tenho um bocado a mania de gostar de saber regras (comportamentais, linguísticas, de cortesia, etc.). É uma idiossincrasia minha. E o facebook deixa-me um bocado à nora, especialmente com pessoas que vejo menos na vida real e com quem acabo por me encontrar mais no mundo artificial do facebook. Há pessoas que eu acho uma simpatia no facebook, e com quem conversei mais na internet do que na vida real. Mas, na tal vida real, quando calha encontrar esta gente, verifico que a proximidade online não significa nada. Conhecer alguém online situa-se ali num estado intermédio estranhíssimo, uma espécie de limbo entre um perfeito desconhecido e um mero conhecido. De modo que eu nunca sei como agir . Trato as pessoas por tu? Não trato por tu? Elogio os posts e conversas interessantes do facebook e quejandos, ou finjo que nunca aconteceram, por revelarem uma intimidade que, na vida real, pura e simplesmente não existe? É tal e qual como na cançãozinha dos grandes GNR - "com os pós modernos nunca ganhamos, mas também nada investimos". De modo que estas pessoas do facebook, nas quais nada da minha vida se investe, a não ser algum tempo, mas eu sou uma pessoa com tempo, são uma espécie de seres virtuais, estranhos fantasmas cujo rosto muda à medida que as pessoas actualizam o perfil e mudam fotografias, e que têm sempre representações diferentes para mim (da mesma forma que eu tenho para elas, com certeza).
E nem vou entrar na complicada tarefa de adicionar amigos ou "cancelar" ou "desadicionar" amigos. Isto, então, é uma verdadeira estratégia, com os prós e contras que só os meandros do tal networking é que conseguem decifrar. Eu costumo ter muita vergonha para pedir às pessoas para serem minhas amigas. Parece que estou outra vez a viver os tempos do colégio, em que (isto passava-se no meu colégio, que talvez fosse um local bizarro; não sei como era noutras escolas), continuando, no meu colégio, as meninas (os rapazes eram mais despachados), se gostavam do vestido ou da boneca da outra, chegavam-se ao pé dela e diziam timidamente: "vamos ser amigas?". E era assim, adicionava-se logo ali uma amiguinha. Eu acho que o facebook também se processa de modo similar, e por isso refreio-me um bocadinho de fazer isto, pedir aos outros "queres ser meu amigo?" - acho, digamos que, intrusivo, embora saiba que não é. É cada vez mais normal.
Enfim. Sou um bocado conservadora. Mea culpa, muita expiação e arrependimento.
O que vale é que eu só tenho cinco amigos no facebook. Se tivesse mais, queria ver como era. Escrevia um tratado filosófico sobre estas temáticas interessantíssimas e mandava ao Eduardo de Sá, esse animal da psicologia, para ele dar a sua opinião. Que beleza que havia de sair dali.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Perdida


Os meus vizinhos mudaram, há pouco tempo, a porta de entrada e o tapete. Isto quer dizer que eu saio do elevador e vejo uma porta desconhecida, um tapete desconhecido e, à míngua de outros elementos de identificação, fico sem saber se aquele é mesmo o meu andar ou se, por acaso, me enganei no botão do elevador e saí no andar errado. Fico ali parada, a interrogar-me se hei-de meter a chave à porta e ter a sorte de ser mesmo a minha porta, ou se tento arrombar a porta de outra pessoa, que depois pode chamar a polícia e é uma chatice.
O caso tornou-se ainda mais grave quando pintaram os prédios do meu bairro todos de igual. Agora, fico à nora para saber qual é o meu prédio. Noutro dia, entrei num edifício que parecia o meu, com um elevador que parecia o meu, e subi para o meu andar. Pus a chave à porta, abri-a, mas quando entrei no apartamento pensei que a minha casa tinha sido invadida por extraterrestres. Da cozinha saía um cheirinho reconfortante de carne assada. Na sala, a televisão mostrava desenhos animados. A estante, em vez de livros, tinha bibelots e fotografias de criança. Havia brinquedos espalhados pelo chão por todo o lado. Da cozinha saiu um homem gorducho, com barriga de cerveja, mais ou menos da minha idade mas meio careca, que me sorriu, disse estar a fazer o jantar e que o miúdo precisava de ir tomar banho. Naquilo que era o meu escritório já não havia escritório nenhum, mas antes um mimoso quartinho de criança, com uma cama coberta por um edredon fofinho onde um menino pequeno brincava com um peluche qualquer.
Percebi logo que me tinha enganado na casa, suspirei de alívio e fugi dali a sete pés. Quando ia a fugir, com todos os meus sete pés, e até oito se os tivesse, vi entrar no prédio uma senhora mais ou menos da minha idade, sem barriga de cerveja mas com franja de cabeleireiro. Voltei a suspirar de alívio. Ainda me enganei umas quantas vezes até dar com a minha porta, mas finalmente encontrei-a. Não tenho nenhum edredon fofinho nem hábito de fazer carne assada, mas ao menos na minha casa, sei com o que posso contar. Tenho é de a conseguir encontrar.

Muito obrigadinho, muito obrigado


Há um disco mítico da minha infância que se chama Jardim Jaleco, de Carlos Mendes. (e que, indecentemente, e tanto quanto sei, nunca foi lançado em CD; infelizmente, o vinil que eu tinha, parafraseando o grande Herman, "viste-lo? Era o visteze-o").
O Jardim Jaleco era sobre uma ida ao jardim zoológico, conduzida pelo Guarda Ezequiel, e em que cada animal cantava a sua cantiga. Ainda hoje me recordo do Elefante D. Henrique que tinha um amigo que era cão e se chamava Diogo (insuperável), da Serpente Serafina, uma das minhas preferidas, mas, acima de tudo, o que recordo com muita saudade, à boa maneira portuguesa, é a música do crocodilo, o Casca-Grossa, que era fadista.
Esta musiquinha é de um humor imbatível, e só consigo perceber isto agora, com esta idade avançada que tenho. Na altura, como o crocodilo Casca Grossa era fadista e eu não gostava nada de fado, não apreciava muito o que ele cantava, embora soubesse a canção de cor. E ainda hoje sei, e por isso lhe acho tanta graça. O Casca-Grossa queixava-se de que as pessoas andavam atrás dele para fazer sapatos e malas com a sua bela pele, e ele, na mais apurada voz de Alfama, cheia de trejeitos, rematava com: "mas eu não me rendo, só pretendo a igualdade! Sou casca grossa, mas nunca pus a pata na poça!"
Lin-do. A "igualdade" e a "pata na poça" são demais para mim e ainda hoje me fazem rir desalmadamente ao recordar o crocodilo fadista. E o melhor ainda era mesmo no fim da canção, em que o público, igualmente à boa maneira portuguesa, se desfazia em palmas e gritos de "eh, fadista!", para receber do Casca-Grossa um sentido agradecimento: "muito obrigadinho, muito obrigado. Muito obrigadinho, muito obrigado". Foi o meu primeiro contacto com o humor conseguido através das frases feitas, das convenções da linguagem, e por isso continua bem presente na minha memória.
Acho que o Casca-Grossa e o Tal Canal são, ainda hoje, as grande fontes de humor que adoçam a minha vida (é piroso, mas é verdade). O que reforça uma teoria que eu tenho, que acalento e continuarei a acalentar, e que é: as crianças têm de ser expostas ao bom humor desde tenra idade, ainda que nem sempre o percebam ou achem graça. Eu não achava graça ao Casca-Grossa, e agora adoro. Também não percebia muito bem o Tal Canal (nem a Marilu eu conseguia compreender bem), e agora não passo sem a minha edição especial em DVD. Também não entendia nada, mas é que mesmo nada, do Flying Circus dos Monty Python que passava na RTP, e agora passo a vida no canal dos Monty Python no YouTube. É assim, a vida muda, os gostos discutem-se, e as referências que trazemos da infância acabam por ser fundamentais no nosso (bom) humor.
Saber rir é das coisas mais compensadoras que existe. Tão bom como o Côte D'Or Truffé Noir. Ou quase tão bom.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Shakespeare dá jeito: all the world's a stage and all the men and women merely players


Queria escrever sobre Synecdoche, New York, o filme de Charlie Kaufman que vi há pouco tempo, mas acho que não consigo. Gostei muito do filme, mas não sei bem porquê. É um filme triste sobre um indivíduo solitário, egocêntrico, feio, incapaz de cumprir o seu desígnio artístico. Não é, verdadeiramente, um artista, é um diletante que se esforça, até aos limites do possível e da depressão, para conseguir criar algo. Porém, nunca consegue. A sua vida é absolutamente infrutífera - de tal modo que, apesar de ter duas filhas, não tem com elas qualquer relação de amor ou proximidade. É um deserto estéril, sem relações humanas profundas que consigam medrar.
É um filme algo deprimente, portanto. Contudo, é também um filme doce, engraçado e inteligente, com um enredado de ficção dentro da ficção que nunca mais acaba e que delicia o espectador, ocupado que fica a tentar perceber aquilo tudo.
Os filmes escritos por Charlie Kaufman centram-se sempre na questão das fronteiras entre a realidade e a ficção e onde é que essas fronteiras se estabelecem. Este Sinédoque leva esta questão até ao limite e quase afirma que não há fronteira nenhuma, que a realidade e a ficção são, em última instância, a mesma coisa. É interessante pensar sobre isto porque, também no limite, a nossa vida é sempre uma ficção vivida pelas várias "personas" que criamos para representar esta ou aquela situação, uma sucessão de duplos de nós próprios que vamos criando a cada momento, para nos adaptarmos ao que nos é exigido pelo exterior. De modo que a nossa identidade não é mais do que isso, uma série de máscaras que nos convêm em contextos diferentes, e que, quando as retiramos, vemos que afinal não está lá nenhum rosto oculto, só mesmo a máscara.
Que bodega de post. Mas queria mesmo escrever sobre Sinédoque, Nova Iorque, e não consigo melhor que isto. O filme é superiormente e infinitamente melhor do que parece descrito por mim, prometo (e também é melhor do que o trailer, que deixo abaixo mas que não ilustra a qualidadezinha do filme).
(e dizer também que os actores são todos bons, bons, bons, competentíssimos Philip Seymour Hoffman e Samantha Morton, e os outros também vão nada mal)

sábado, 5 de dezembro de 2009

Qual é coisa, qual é ela?

Dói-me a barriga.
Tanto tenho vontade de rir muito, como de chorar.
Tenho saudades de tudo, mas depois forço-me a ficar completamente indiferente.
Quero que o telefone toque, mas se toca fico nervosíssima.
Dói-me a cabeça.
Durmo mal.
Acordo sobressaltada.
Dou por mim a sorrir, feita parva, ao ver as bochechinhas coradas das crianças, mas apenas porque me lembram daquela canção dos Rolling Stones que reza it is the evening of the day, I sit and watch the children play, smiling faces I can see, but not for me, I sit and watch as tears go by.
Acho que este mundo é o melhor dos mundos possíveis.
Acho que este mundo é o pior dos mundos possíveis, cinco minutos depois.

Adivinha: estou apaixonada ou tenho uma depressão?
(Venha o diabo e escolha)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A tentação da preguiça

Tenho tosse.
Tenho o nariz a pingar.
Até tive de sair da Zara e tudo, que o pó da roupa atacou de tal forma o meu pobre narizinho que foi só fungar até desistir das compras.
Ah, a tentação, a tentação de confundir os sintomas de uma simples constipaçãozita provocada pelas infindas asmas e renites alérgicas que me acometem, a mim, pobre tísicazinha, e começar a dizer por aí que tenho gripe A, e pobre de mim, que terei de ficar em casa imenso tempo, sem poder trabalhar de forma nenhuma, a começar hoje e a acabar na sexta-feira da próxima semana...

A vida dos outros

Acho que, no fundo, no fundo, as pessoas querem sempre dizer-nos a vida toda delas. Já que não podem aparecer nas revistas, consolam-se com os incautos que vão apanhando e sobre quem poderão despejar todo um mundo de informação que não interessa para nada ao receptor, mas que contribui para que o emissor se sinta tremendamente importante.
Cheguei a esta conclusão ao observar as pessoas que falam ao telemóvel em viagens de autocarro ou comboio., coisa que eu adoro fazer, porque, subrepticiamente, sim, tenho um interesse desfasado na vida do cidadão comum. E há cidadãos que, para meu deleite, fazem questão de desfiar toda a sua vida, personalidade, gostos e embirrações aos gritos, para informar não só o desgraçado do outro lado da linha que tem de os ouvir, mas também toda a audiência composta pelas pessoas que se encontram no dito autocarro ou carruagem de comboio.
Exemplificando.
Uma vez, num comboio a transbordar, com o ar condicionado avariado, a rapariga ruiva, meio vesga, que se sentou à minha frente, pegou no telemóvel e não descolou de lá o ouvido até chegarmos ao destino. É importante dizer que o comboio era descendente, como muitos comboios são, e que não ia de Queluz à Cruz Quebrada, mas fazia antes o percurso de uma cidade do norte de Inglaterra até Londres. A viagem demorou horas, período de tempo que chegou e sobejou (adoro este verbo) para que eu me inteirasse do seguinte:
a rapariga vivia no norte e ia a Londres passar o fim-de-semana com um amigo, para ver se espairecia, porque o namorado, que se chamava Lee, a tinha deixado; este namorado tinha um irmão chamado Steve, que estava do lado da rapariga e não percebia porque é que o Lee tinha abandonado a rapariga, que era boa rapariga e não tinha nada de mal; aliás, ela e o Lee até já viviam juntos há três anos, e ela inclusivamente tinha deixado o namorado da altura, o Stanley, para ficar com o Lee. Ora, este Lee não era bom da cabeça, porque não só tinha, lá está, abandonado a rapariga, como tinha ido viver com a mãe desempregada que vivia em Blackpool; a rapariga não entendia o que é o que Lee tinha a fazer em Blackpool, que é sítio sem futuro nenhum, e porque é que tinha decidido ir viver com a mãe, que estava desempregada e não tinha dinheiro para o sustentar. O próprio Lee não tinha dinheiro, e ela, raparia ruiva vesga, é que o tinha sustentado aquele tempo todo, para agora estar para ali abandonada por dá cá aquela palha; por isso, ia para Londres descontrair, que aquela história toda estava a dar-lhe cabo da cabeça, mas o amigo que estava à espera dela em Londres era apenas um amigo e nada mais, já que ela estava farta de homens, era cada um pior que o outro, e de agora em diante só ia mas era prestar atenção a mulheres, que se calhar como lésbica tinha mais sorte.
Saí do comboio e a rapariga seguiu à minha frente. Não vi ninguém à espera dela. Afastei-me para o metro e ainda me virei para trás. Vi-a especada, a olhar não sei para onde, sozinha. Coitadita.
Noutro dia, no autocarro, ia uma senhora igualmente entretida a falar ao telemóvel. Estava a falar com uma amiga. Esta amiga tinha um filho. Este filho tinha uma namorada. O mesmo filho também tinha um carro, mas não tinha casa, nem estudos, nem desejo de ter estudos, nem emprego a sério, e ainda vivia com os pais. Isto porque não tinha estímulo para sair de casa, porque a namorada não queria casar com ele. A senhora do telemóvel aconselhou a amiga do outro lado da linha que dissesse ao filho para acabar com a namorada, porque esta última era uma abusadora, que queria andar de carro até arranjar outro rapaz melhor de quem ela gostasse, altura em que terminaria todo o namoro como o filho da senhora do outro lado da linha. O filho que poupasse tristeza e gasolina e acabasse já com a tal rapariga.
Ontem, ao almoço, as duas raparigas que se sentaram ao pé de mim a bebericar uma sopa e um café estavam a discutir a problemática do amante de uma delas. Este amante tinha uma companheira com quem vivia, mas sabia que ela era "má-rês", de modo que não confiava nela, isto é, não punha a casa em nome dela nem tinha filhos dela, mas tinha uma filha, isso sim, de uma outra; esta outra também não era boa pessoa, e a filha parece que era como a mãe, de modo que o amante da rapariga que estava a almoçar ao meu lado, desgraçado como era, tinha sido forçado a aventurar-se no mundo do affair extra-conjugal, namorando clandestinamente com a rapariga que se sentava ao meu lado. Segundo esta, o amante gostava dela e queria ficar com ela, porque nela sim, ele podia enfim confiar, mas a questão é que a companheira era uma bruxa e não o deixava em paz, e ele não sabia bem como descalçar a bota. A amiga da rapariga, que também estava a almoçar ao meu lado, disse que aquilo era tudo "doentio". Apeteceu-me pôr ali um "like", como no facebook.
A vida dos outros cansa muito. E é assim, levamos com ela todos os dias, despudoradamente. Se a rapariga do comboio, a senhora do autocarro, e a rapariga do almoço, algum dia gozarem de 15 minutos (ou até mesmo só 5, que chegam bem) de fama, aposto que até fotocopiam o BI para que o mundo o estude atentamente.
Feitios.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Come chocolates, pequena, come chocolates

Comida saudável, que bom, legumes bio, muita sopinha, sumos naturais, pão integral, cenouras e courgettes. É sempre assim que eu me alimento.
Excepto quando está sol, porque apetece mais gelados.
Excepto quando chove, porque fico triste e apetece chocolate.
Excepto nos dias de semana, quando tenho de ir trabalhar e apetece comer pão branquinho e croissants, para consolar.
Excepto quando me convidam para jantar, atraindo-me de forma quase desonesta com:




Atracção fatalíssima.
Mas de resto, sempre comidinha saudável, iogurtes naturais, beringelas, que bom.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A causa do pessimismo

Quando penso na vida em geral, e na minha em particular, chego à conclusão de que aquilo que me faz adoptar, quase inconscientemente, uma perspectiva algo desiludida e lúgubre face ao pacote casamento + filhos + monovolume + construir vivenda + mulher-a-dias (opção "cão" depende do tamanho do jardim e encargos financeiros acrescidos) não é o número de divórcios sempre em flecha, não são as histórias terríveis de casamentos que nasceram tortos e ainda mais tortos acabaram, não é o tédio de ver famílias inteiras em centros comerciais, não é ver criancinhas de quatro anos aos gritos, que ainda não comem com garfo e ainda dizem "proquê", para grande deleite dos adultos, que não as corrigem e as vão deixar cometer erro atrás de erro, alguns bem mais graves do que aqueles que respeitam à mera ortografia portuguesa, para o resto da vida. Não. Não é nada disto. Aquilo que me faz torcer o nariz, com algum receio, ao pacote casamento + extras (incluindo a opção "férias") explica-se com uma leitura muito antiga, de há muitos anos, e que é esta:



Querida Alice Vieira, que escreveu um livro para mim inesquecível, Viagem à Volta do Meu Nome, em que um rapaz chamado Abílio, que tem uma família só de Constanças, detesta tanto o nome próprio que decide passar a chamar-se Luís, partindo numa divertida e interessante viagem de auto-descoberta, dizia, a querida Alice Vieira, que eu ainda hoje adoro, que é ainda hoje das escritoras mais importantes do meu universo, a querida Alice Vieira conseguiu escrever este livro do El-Rei Tadinho, que goza descaradamente com os contos de fadas (os mesmos que eu tanto aprecio), desconstrói todos os lugares-comuns tão doces e fofinhos a que estamos habituados (mormente o "felizes para sempre"), e conseguiu assim, alegremente, destruir todas as expectativas que eu poderia acalentar de alguma felicidade doméstica.
Se eu tivesse lido El-Rei Tadinho mais tardiamente, com certeza apreciaria apenas o seu inesgotável humor, as situações caricatas e engraçadas, o grande jogo de referências e desconstrução face aos contos de fadas tradicionais. Como o li muito, muito pequena, aquilo que aprendi, com alguma angústia, é que as princesas (ou as fadas) louras e de olhos azuis casam com o rei (Tadinho, neste caso), mas depois não vivem felizes para sempre, nas lonjuras do seu castelo mágico, rodeadas por aias de vestidos compridos e gorduchos bebés de cabelo aos caracóis. Não - estas princesas casam-se, mas depois têm de lavar fraldas e limpar a casa, a mãe das princesas vive com elas e com o marido e faz sopa de feijão encarnado, o rei levanta-se todos os dias muito cedo para ir para o escritório, chega a casa cansado, o que faz na vida é trabalhar e ter filhos e mal tem tempo de prestar atenção ao resto.
De modo que aprendi, cedo de mais, uma lição que só deveria ter aprendido mais tarde, quando tivesse idade para perceber que os contos de fada são só ficção. Na idade em que deveria ainda aspirar a ser como a Bela Adormecida ou a Branca de Neve (embora sem a maçã), já eu sabia que lavar fraldas (hoje em dia são descartáveis, pronto; este problema está resolvido) e fazer sopa não é assim tão interessante. Pelo menos, o El-Rei Tadinho e respectiva esposa, a fada loura, não pareciam terrivelmente felizes. O "para sempre" passou-lhes ao lado. E este exemplo do casal infeliz, numa história para crianças, gerou um pessimismo em mim que não é muito agradável, mas que existe.
A Alice Vieira é responsável por grande parte do meu pessimismo, o que afecta seriamente a minha vida, e por isso, qualquer dia, ainda hei-de ajustar contas com esta senhora. Apesar de continuar a gostar muito dela. O que cria um dilema. O que, por sua vez, cria outro problema para eu resolver.
A minha vida é assim, só agruras.

Era uma vez

Gosto de contos de fadas, de princesas, de monstros, dragões, mafarricos, bruxas más, feiticeiras, maçãs envenenadas, castelos, masmorras, príncipes encantados, reis, rainhas, encantamentos, poções mágicas, caldeirões, sapatinhos de cristal, abóboras, carruagens, bailes, vestidos compridos, caixões de cristal, anões (e porém, não gosto particularmente de Gandalfs, Terras do Nunca ou Médias ou o que seja, anéis, hobbits; não sei porquê, mas comigo este universo não resulta).
Gosto, enfim, de mundos puramente ficcionais, ilimitados. E por isso gosto muito do universo de dois indivíduos, que acho bastante semelhantes, Tim Burton e Edward Gorey. O primeiro é sobejamente conhecido, o segundo também, mas como é mais velho e não fez filmes, fala-se menos dele (além disso, também já morreu). Gorey tem livrinhos maravilhosos, de um humor lúgubre e macabro, repletos de ilustrações deliciosas, de figuras delgadas e delicadas, em cenários estranhíssimos. Tem coisas terríveis, e no entanto irresistivelmente engraçadas, como estas:



Acho que dá para perceber sobre o que trata este livro, The Gashlycrumb Tinies. Tem outras coisas tristes, quase tragicómicas, ou ainda ilustrações que não servem para nada nem dizem nada, a não ser a brincadeira, ou o nonsense pelo nonsense, como estas:


Lin-do.

Lembro-me de que Jim Henson tinha um programa, há muitos anos, chamado o Contador de Histórias, em que John Hurt se sentava à lareira e, todos os episódios, contava um conto diferente, recheado de tudo aquilo a que se tem direito nos contos de fadas: bruxas, dragões, heróis, reis, princesas, etc. Eu adorava este programa, que aliava a riqueza narrativa ao encanto da imagem. E é o que faz gente como Tim Burton e Edward Gorey. Dão mais fantasias à nossa fantasia. Gosto bastante, no fundo era só para dizer isto.

domingo, 29 de novembro de 2009

Toma lá 100 escudos e não gastes tudo em freiras

Por um lado, gosto do Natal. Gosto das compras (sim, é verdade), do descanso, dos doces, da descontracção da família, do entusiasmo tão peculiar das crianças nesta altura, das decorações todas, gosto sobretudo que haja pelo menos uma época do ano em que toda a gente sente a obrigação de ser boa, embora ninguém cumpra efectivamente este desiderato da bondade.
Por outro lado, não gosto do Natal. Não gosto porque eu, tal como quase toda a gente, não me torno necessariamente bondosa por esta altura, nem mais espiritual, nem mais nada. Quanto muito, tenho mais consciência da minha maldade e do meu egoísmo e sinto-me mil vezes pior com isso do que nos restantes meses do ano, o que provoca ansiedade e stress, o cabelo e a pele ressentem-se, e a depressão está a um passo. É um fenómeno complicado.
Vê-se mais gente a pedir para a caridade, na rua, durante o Natal. Cancros, crianças abandonadas, drogados, sem-abrigo, há gente a pedir para tudo. E há pedintes. Há os pedintes de Lisboa, que estão sempre em todo o lado, mas que no Natal parecem ainda mais flagrantes, mais incomodativos, mais berrantes. Cortam o coração de forma ainda mais profunda, são mais difíceis de ignorar, a gente pensa "mas como é que é possível viver numa sociedade em que estas coisas se tornaram normais?", e depois viramos as costas e tentamos esquecer. E esquecemos. Eu, pelo menos, esqueço, o que é repugnante mas no entanto verdadeiro.
Não consigo dar uma moeda a um pedinte. Não por ter medo que ele vá gastar tudo em freiras, como dizia João César Monteiro, mas porque considero uma indignidade dar um euro, dois, três, quatro, cinco, o que seja, a outra pessoa, que teve o azar de estar ali, naquela situação. Sinto-me mal, sinto que é ofensivo para a pessoa que eu lhe dê dinheiro. Podia ser eu. Não sou, mas podia ser. Eu tive sorte, a outra pessoa teve azar. E o poder que eu, ou qualquer outra pessoa como eu, acaba por ter numa situação como estas, face a um pedinte, é algo de ilegítimo, de grotesco, de bizarro. Não consigo lidar com esta bizarria grotesca, e por isso nunca dou dinheiro, embora saiba que talvez devesse dar. Prefiro consolar-me numa "dor que não dói" e contribuir para instituições de apoio organizadas. Assim é que se ajuda, não é? Não é a dar dinheiro aos pedintes na rua, não é? Sim, claro que é. Por exemplo, aquela senhora que vejo todos os dias na escada do metro, velhota, de lenço na cabeça, com um pequeno cartão riscanhado a preto, "ajude, bem-haja, etc". O meu euro não lhe faria qualquer diferença. Claro que não. O que é que se compra hoje em dia com um euro, não é?
Não lhe faria qualquer diferença. Não faria.
Regresso de um blog que fazia muita falta, aqui. Fico muito contente, e que desta vez o blog se mantenha firme e hirto por muitos e longos anos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Como os sentimentos esdrúxulos, as cartas de amor são naturalmente ridículas

Eu dantes tinha uma mania, que era: escrever cartas de amor.
Sempre que pensava estar apaixonada, escrevia muitas cartas; enviava algumas, não enviava outras, mas escrevia sempre muitas. Já nessa altura sabia que Fernando Pessoa as considerava ridículas, mas eu discordava em absoluto. As minhas cartas de amor eram profundas e filosóficas, cheias de verdades importantíssimas sobre a vida e os sentimentos, e seriam tudo menos efémeras. Ou, pelo menos, eu assim pensava, naquela altura.
É evidente que a grande tristeza de crescer é compreender que a verdade está não nas minhas cartas de amor que o tempo levou, mas antes em Fernando Pessoa. É claro que todas as cartas de amor são ridículas, e não só, as minhas em particular ainda são mais, porque as escrevi com a arrogância da convicção de que não eram ridículas. Resta-me a consolação de saber que também eu recebi algumas cartas de amor, e que também estas foram ridículas. De modo que foi troca por troca, o que é simpático refrigério.
E compreendo agora que tudo o que tenha a ver com sentimentos, mimosos estados de alma e doces amores, se reveste de um ridículo que eu não consigo discernir de onde vem, mas que existe. Não estou a falar sequer da parafernália grotesca do S. Valentim, estou a falar de coisas normais, de ver duas pessoas apaixonadas a olhar uma para outra e termos de desviar a cara para não nos sentirmos envergonhados por elas. Devíamos aplaudi-los, e no entanto ficamos ali, contrafeitos, embaraçados, desconfortáveis. Excepto, é claro, quando somos nós os pombos apaixonados, e envergonhamos nós os outros.
Não percebo porque é que o amor tem de ser ridículo, mas o que é certo é que o é. Mesmo. No entanto, talvez este ridículo seja necessário ao amor. O fofinho, o queridinho, tem de fazer parte do amor, mesmo que depois, enfim, a pessoa entre em expiação e compense com uma data de filmes suecos ou qualquer outra coisa que provoque sofrimento e pessimismo, para que o equilíbrio se restabeleça. Mas o fofinho é necessário ao amor.
Eu, porém, cortei com as cartas de amor. São, efectivamente, ridículas. O fofinho não tem de ir tão longe.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Que me metam entre cobertores e não me façam mais nada, que a porta do meu quarto fique para sempre fechada...

Metade da minha vida é passada com sono.
Acordo com sono, vou trabalhar com sono, almoço, fico cheia de sono depois do almoço, os cafés não têm qualquer efeito em mim, passo a tarde com sono, chego a casa com sono, tomo café outra vez, e mesmo assim janto com sono.
Só não tenho sono imediatamente após o jantar. É o único momento da minha vida em que não tenho sono nenhum.
Vejo televisão e não tenho sono.
Leio e não tenho sono.
Ouço música, ouço os vizinhos aos berros, os vizinhos calam-se finalmente e vão dormir, tudo finalmente silencioso, e eu ainda sem sono.
Até quando adormeço, não tenho sono. Acordo no outro dia, desta vez cheia de sono, sem saber bem como adormeci. Espera-me um dia repleto da vontade terrível e cruel de fechar os olhos e descansar, e porém sem o poder fazer.
As pessoas falam comigo e eu só peço que se calem, já que sou perfeitamente incapaz de compreender o que dizem, acontece-me tantas vezes as pessoas falarem comigo e eu a desesperar-me, porque me esqueci daquilo que disseram há dois segundos, distraída que estava, quase sonâmbula. Já estou assim há alguns anos, e portanto hoje em dia já quase toda a gente que conheço se aborreceu comigo, de modo que não tenho amigos, nem conhecidos, nem nada, passo a vida ostracizada e cheia de sono.
Tinha uma amiga que era assim. O caso dela foi ainda pior. Tinha insónias de tal modo agudas que passava a noite em claro. Morria de sono o dia todo.
Deixou de ter energia mórbida para fazer exercício físico mórbido e ficou ela obesa mórbida.
Deixou de ir de carro para o emprego porque teve dezenas de acidentes por adormecer ao volante.
Deixou de ir ao emprego porque não se conseguia levantar de manhã. Foi despedida.
Ficou sem rendimentos. Perdeu a casa. Perdeu o carro estampado. Foi viver com os pais. Engordou ainda mais. Ficou sem poder sair de casa. Continuou sem dormir, embora não tenha a certeza, deixei de me dar com ela.
É essencial saber vencer a insónia.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

The Man with No Name


Se não me estivesse a doer muito a cabeça, falaria de Clint Eastwood e de como o adoro ver, velho e enrugado, a resmungar contra tudo e contra todos e a polir o seu magnífico Gran Torino verde, ou azul, ou o que era, e como adoro aquela dança final no The Good, The Bad and the Ugly, aquele olhar de desprezo, o andar firme, a postura toda convencida, a figura estilizada até à perfeição do duro de roer, batido pela vida e por isso invencível. O criminoso reformado e de bom coração em Unforgiven, o foragido espertalhão de Alcatraz, até o polícia quase psicopata que é Dirty Harry, adoro tudo, adoro o semblante de pedra, áspero, silencioso. Gosto, sobretudo, do facto de Clint Eastwood falar pouco mas, quando fala, é para fazer justiça, ou então para pôr alguém no seu miserável lugar - é que é uma coisa que entusiasma uma pessoa, de facto.
No entanto, o que eu gostava verdadeiramente era de poder, um dia, ver a dança final, icónica, de The Good, The Bad... no luxo de uma sala de cinema, com aquela música intensa e entusiasmante a retumbar. Isso e o Ran. É um sonho que eu acalento.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Ir à rua pôr o lixo

Há uma grande desvantagem relativamente aos momentos catárticos, como por exemplo o concerto dos Massive Attack do post anterior, e que é o sentimento profundo e arrasador da ressaca. Regressei a casa sábado à noite limpa de todos os pecados e inundada por uma alegria eufórica, com os ouvidos ainda a retumbar daquele ritmo contagiante e frenético; acordei Domingo à tarde cansada e sem dar sentido à vida. Era como se as coisas só voltassem a fazer sentido se pudesse reviver momentos semelhantes aos da felicidade da noite anterior. Tinha olheiras e um grande sentimento de frustração.
Voltei para a cama. Doía-me a cabeça e tremia de frio. Passei o dia a chá e bolachas. Não vi televisão. Não consegui ler. Tudo um supremíssimo cansaço.
Hoje, consigo suportar a rotina apenas e só porque penso numa mesa de café, uma chávena escaldada, o líquido a ferver, a comemoração do fim do dia. É só mesmo isso que me aguenta. Sim, porque o concerto, esse, já é passado. Como diria o Herman num dos episódios do Tal Canal, "visteze-o? Era o viste-lo".
As alegrias, as catarses, as limpezas emocionais, trazem muito lixo ao de cima. E depois toda a gente tem preguiça de ir à rua deitar o lixo fora.

Toy-like people make me boy-like


Ai, gostei tanto de os ver este fim-de-semana. De tanto cantar, saltar e dançar, saí do Campo Pequeno a sentir-me quase "expurgada" de aborrecimentos, contrariedades, irritações. A música tem este efeito de catarse. Se todos os fins-de-semana as pessoas pudessem ir a um concerto de uma banda de que gostam muito, muito, muito, não precisavam de ser alcoólicas nem de se meterem na droga. É um conselho que eu aqui deixo, em vez da metadona, que se experimente a música.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

No princípio, eram verbos como este...

D. DINIS

CANTIGA D'AMIGO


Levantou-s' a velida
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.

Levantou-s' a louçana
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto:
vai-las lavar alva.

(E) vai lavar camisas,
levantou-s' alva;
o vento lhas desvia
eno alto:
vai-las lavar alva.

E vai lavar delgadas,
levantou-s' alva;
o vento lhas levava
eno alto:
vai-las lavar alva.

O vento lh'as desvia;
levantou-s' alva;
meteu-s' alva en ira
eno alto:
vai-las lavar alva.

O vento lh'as levava;
levantou-s' alva;
meteu-s' alva en sanha
eno alto:
vai-las lavar alva.

D. Dinis

Encontrei a transcrição aqui, neste belo blog, que figura também na listinha à direita, e onde se pode encontrar a "tradução" do mesmo poema para português moderno, de Natália Correia. Está aqui o princípio de tudo - da música, da poesia, da literatura, do português. Quer dizer, o princípio está em nós. Poemas como este de D. Dinis talvez sejam, digamos, a "verbalização", e essa, nem todos a conseguem fazer. Só os grandes.

Contra a sinceridade, marchar, marchar

Assim um post à pressa, que tenho uma pilha de papelada aqui mesmo ao pé de mim.
Há uma coisa, acho que talvez já tenha escrito sobre isso, dizia, há uma coisa que eu considero uma daquelas mentiras universais que nos ensinam só porque é bonito, só porque, enfim, as criancinhas ainda têm de crescer com alguns princípios, e que é a sinceridade. Desde quando é que a sinceridade é uma qualidade? Não me parece que seja.
Em primeiro lugar, quando as pessoas me vêm com "olha, desculpa lá a sinceridade", ou "olha, já sabes que eu vou ser muito sincera", este elevado predicado da sinceridade só serve para anunciar, como bem sabemos, que lá vem merda. É o intróito muitíssimo moral que as pessoas gostam de usar para prefaciar uma ofensa, ou algo desagradabilíssimo que já sabem que não vamos gostar de ouvir. Um insulto, portanto ("tu já sabes que eu sou muito sincera - acho que estás a ser parva, acho que és uma besta", etc). Lamento dizer que a sinceridade não atribui elevação moral a ninguém para vir chatear os outros. Não atribui, não.
Em segundo lugar, se desse na cabeça de toda a gente começar a ser "sincera", a sociedade resvalava e esfarelava-se toda, ainda mais do que já está. Todo o convívio humano, toda a base diária que nos permite suportar os outros, assenta em não sermos sinceros. Exemplos:
1.
- Achas que sou boa no meu trabalho?
- Ah, acho que sim... quer dizer, a pessoa tem de estar sempre a fazer um esforço, sempre a estudar, não é, mas sim, acho que sim.
- Ah, obrigada. Então vou continuar, com muita vontade e esforço.
(exemplo de cordialidade, comunicação harmoniosa e, lá está, desonestidade)
2.
- Achas que sou boa no meu trabalho?
- Não, realmente acho que não, acho que és um bocado burra, muito limitada, podes matar-te a estudar que nunca vais perceber isto.
- Minha grande vaca, tens a mania, espera que te vou bater.
(tradução do exemplo anterior em linguagem sincera)

A própria língua está organizada em torno da não-sinceridade. O que é a delicadeza senão uma mentira? O que são as formas de tratamento, o senhor, a senhora, o respeitoso Vossa Excelência, a Sua Majestade, senão metáforas mentirosas que se destinavam/destinam a cumprir um desígnio bem mais importante do que a sinceridade - a harmonia das relações sociais (sim, porque chamar "Sua Majestade" a monarcas como, digamos, D. João III, por exemplo, é realmente uma metáfora mal enjorcada, mas que cumpria o seu propósito)?
Eu sou uma pessoa que é contra a sinceridade. Com a sinceridade, não vamos a lado nenhum. Contra a sinceridade, há que protestar, porque não há interesse em saber o que as pessoas realmente pensam, nem elas, se fossem espertas, teriam qualquer interesse em revelar-nos aquilo que a sua moral sinceridade pensa. A sinceridade é do foro íntimo, é tão íntima como qualquer segredo bem guardado, e é aí que deve ficar - sob pena de ninguém se entender neste pequeno mundo que, já de si, é tão dado à beligerância.

domingo, 15 de novembro de 2009

Manhã Pura

Agora que tenho o meu ipod e respectivo itunes de volta ao seu estado normal (um obrigado encarecido às almas caridosas que me auxiliaram), volto ao fru-fru (haverá expressão mais pavorosa que esta, eh eh?) das playlists e dos shuffles e dessas coisas todas muito deslumbrantes.
Bom, uma coisa que tem despertado o interesse é o facto de haver certas músicas que se adaptam particularmente bem a certas alturas do dia. Já escrevi que, por exemplo, ouvir Tom Waits de manhã é coisa que não resulta. O Tom tem de ter um espírito e um ambiente bem mais obscuros - o que o torna particularmente bom para um dia escuro e chuvoso como este.
No entanto, como ouvir música de manhã é muito importante para mim, pois se não ouço algo de jeito antes de começar a trabalhar, sou, digamos que, uma mistura de zombie ressacado deprimido mal disposto com sede de sangue, o que é bastante negativo (exemplo, retirado convenientemente desse grande filme que é A Noite dos Mortos - Vivos:







mesmo de meter medo),






dizia, como fico num estado miserabilíssimo, preciso, de facto, de uma música matinal eficaz. De modo que ando a estudar uma playlist matinal que resulte mesmo, que condense a mistura ideal de energia, melodia, profundidade e alegria inconsequente, para dispor bem.
Até agora, tenho um top 5, como diria John Cusack nesse outro grande filme que é o Alta Fidelidade, do qual constam:
1. o fundamental e indispensável Unfinished Sympathy, Massive (já escrevi sobre isto antes, não me vou alongar muito sobre esta canção; tenho apenas uma pequena ressalva, que é: bilhetinho para o Campo Pequeno já cá canta, ponto de exclamação)
2. o imprescindível Pure Morning, Placebo (o que eu gosto destes indivíduos, gosto, gosto)
3. Are You Ready To Be Heartbroken, do grande Lloyd Cole (esta música traz à playlist aquela parte da profundidade, da filosofia, para nos convencer que o dia que está prestes a começar tem uma qualquer relevância. Infelizmente, não encontro um vídeo decente desta canção no youtube para postar aqui)
4. Postcards From Italy, dos Beirut (a alegria inconsequente, meio folk, meio havaina, dá vontade de cantar, muito giro e querido)
5. uma escolha recente, mas que não consigo parar de cantarolar, e que portanto consolida o sentimento eufórico e alegre que já vem dos Beirut, e que é You Don't Know Me, Ben Folds e Regina Spektor.

O importante para começarmos bem a manhã é mesmo, reitero, o equilíbrio perfeito entre a euforia alegre e a filosofia. Até hoje, estas musiquinhas têm impedido o meu lado zombie-feio de emergir de uma forma absolutamente descarada, mas sei que ainda há muito trabalho a fazer.
Tenho também pensado na playlist adequada para o fim do dia, quando se sai do trabalho, cansada e farta e a precisar de um mimo. Mas isso fica para outro post, que é matéria mais complexa.


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Gaja que faz o meu estilo: Elis Regina


Ilumina a mina escura e funda, o trem da minha vida

Esta frase, cantada pela voz grande da Elis e que ouvi em pequena, produziu uma marca indelével na minha imaginação infantil, pela sua força intensa, que me impressionava.
Lembro-me de, em pequena, ver a Elis na televisão, muito sorridente e de cabelo curtinho, e de a ter achado fascinante (sempre fui uma criança com apurado sentido estético no que toca a cabelos). Lembro-me de a minha mãe ouvir "em repeat" este Romaria, de arrepiar. Ouvir a Elis continua, surpreendentemente, a produzir em mim exactamente o mesmo efeito de quando eu era pequena - uma comoção que quase dá um nó na garganta. Límpida e intensa - a voz, a presença, tudo.
E deixo aqui este vídeo. Também de arrepiar, de dar nó na garganta. Grande Elis.




quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Kafka está a rir-se de mim


Provavelmente, este seria o tipo de coisa que deveria escrever no facebook ou twitter, que não tenho, ou quejandos. Mas vou escrever aqui.
Comprei um ipod. Um objecto minúsculo que custa centenas de euros. Enchi-o de música até transbordar. Mudei de computador. E a música que tenho no ipod, que eu comprei, que é meu, por alguma razão que desconheço, não pode ser transferida para o computador, que também é meu. Quer dizer, é tudo meu, paguei tudo sem ficar a dever nada e, alegremente, a querida Apple, qual velha beata a velar pelos seus ricos santinhos, parece não ter pensado num método prático e simples que me permita ter a minha musiquinha na minha biblioteca do itunes, facilmente, sempre que mudo de computador. Se o disco vai abaixo, pumba, vai tudo abaixo. Então mas o quê, agora tenho de ir "queimar" os CDs todos outra vez e perder horas neste processo? Compro um ipod novo?
A culpa é toda minha. Isto é uma grande lição. Gasta-se o virtual dinheiro, que julgamos nosso, num deslumbramento bimbo pelas tecnologias que facilitam tudo, facilitam imenso, e algo tão simples, como ter a nossa música (sublinho o determinante possessivo e, já agora, sublinho possessivo) no nosso pc a partir do nosso ipod (reitero o determinante possessivo) é impossível.
Por favor, alguém que me diga que isto é tudo uma grande inépcia da minha parte, fraca de espírito que sou em relação a tecnologias e informáticas, e que poderei, num ápice, transferir a música do ipod para o novo pc. Que isto sou tudo eu, que sou estúpida, e venho para aqui injustamente vilipendiar a sedenta Apple, na sua enjoada e insuportável missão de proteger direitos de autor e, já agora, ganhar uns trocos à custa disso (e à nossa custa, também). Digam-me que isto é tudo injustiça minha e, já agora, em podendo e por caridade, informem-me de como proceder para efectuar a dita transferência. Um sentido bem-haja.

(estão a ver, este sorrisinho ironicozinho do Kafka, pior que a Mona Lisa? Ah, pois. Quem sabe, sabe, e os parvos como eu ficam a olhar).

E se este blog fosse assim...


Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
Rainer Maria Rilke


Olho o sol indiferente da baça janela.
As pessoas caminham com uma tranquilidade fria.
Não sei quem és, mas sei que te conheço. O olhar rasgado e vedor nessa presença física e diáfana que me outorgas. O beijo simples. A partida certa.
O dia voltará a amanhecer, tão certo como o teu regresso. A solidão é o meu abraço, o meu colo, o meu mais frio lençol, um toque gélido na pele de mar e luz.
Não sei quem és, mas sei que te conheço.



Há uma razão para este blog não ser nada disto, e essa razão é:
(junto o meu ao riso do Nelson)

Pessimismo

Não havia mais ninguém a comprar castanhas.

Optimismo

Hoje vi uma senhora rechonchuda a comprar castanhas quentes e boas a um senhor, na rua.
A senhora estava muito sorridente.
Tinha um ar mesmo satisfeito, enquanto procurava troco na carteira para dar ao homem.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Não sou eu, não

Estou cheia de sono.
Estou a morrer de sono.
E o mundo lá fora quer coisas práticas, respostas directas, sucesso, competência, eficiência.
Eu tenho uma resposta muito clara a estas coisas que o mundo quer. E vou dá-la da forma mais clara possível, para que o mundo perceba bem, de uma vez por todas:





Há muitas alturas na vida em que eu gostaria de cantar esta canção, ou por outra, recitar esta canção. Resolveria muita coisa.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Homo homini lupus?


Estou irremediavelmente dividida entre um humanismo optimista e o terrível pessimismo de Hobbes, "o homem é lobo do homem".
Como é que uma matilha de lobos, ou até mesmo um lobo terrível e solitário, com sede de sangue e de poder, consegue, ao mesmo tempo que ostenta este carácter tão assassino, fazer coisas como a literatura, a a arquitectura, a pintura, enfim, coisas que encarnam qualquer ideia possível de perfeição? Um professor da FLUL, Manuel Frias Martins, escreveu um livro sobre literatura e chamava a esta ideia da perfeição (pelo menos, acho que era isso que ele queria dizer) a "matéria negra".
Mas o homem é lobo do homem. Como é que um lobo com sede de sangue consegue, ao mesmo tempo que ostenta um carácter tão assassino, fazer coisas como a literatura, a a arquitectura, enfim, a perfeição, a matéria negra?
É deste círculo vicioso que não me consigo livrar.

domingo, 8 de novembro de 2009

O artista é um bom artista

Espero ansiosamente por qualquer estreia dos Irmãos Coen - A Serious Man, neste caso. Alguns filmes são melhores do que outros, já se sabe, e daí estes realizadores passarem do 8 ao 80 aos olhos da crítica - tanto são adorados com Fargos, Este País..., Bartons Finks, como são vilipendiados com Lady Killers, Burn After Reading e até (esta, sinceramente, não percebo), o magnífico Oh Brother Where Art Thou, que eu adoro, mas acerca do qual nunca li críticas tão entusiastas como deveria haver (quando Este País... estreou, cheguei a ler uma crítica em que se dizia que os Coen tinham, finalmente, feito o seu primeiro grande filme desde Fargo. Infelizmente, não consegui encontrar esta pérola na internet para postar aqui, mas tenho a certeza absoluta de ter lido tal monstruosidade, penso que no Público; no entanto, como digo, não posso provar).
Há pessoas que já fizeram coisas tão boas que não precisam de comprovar constantemente a sua genialidade. Tudo o que fazem que não é uma obra-prima é, pelo menos, bom. Os Irmãos Coen (tal como o Woody Allen, o Tim Burton ou o Nick Cave, quanto a mim) são exemplos paradigmáticos desse tipo de pessoas. Nunca vi nada deles que não merecesse ser visto.
Também gosto daquele tipo de artistas que recompensa o público. Adoro quando o Woody Allen recheia os seus filmes mais recentes com diálogos e citações de filmes anteriores, como que a piscar o olho àqueles que reconhecem de imediato a referência; gosto quando Nick Cave conta uma história do princípio ao fim nas suas canções, terminando numa apoteose (daí coisas como Stagger Lee serem fabulosas, na escalada narrativa e de violência que oferece); gosto quando os irmãos Coen pegam num elenco reduzido, em cenários simples, em narrativas vindas do noir, contadas anteriormente centenas de vezes, e conseguem um diamante perfeito como este:




ou:





The Man Who Wasn't There é, visualmente, dos filmes mais bonitos que existe. Esta foto aqui acima parece quase retirada do Citizen Kane. Além disso, tem o Billy Bob Thornton a fumar da forma mais estilosa que já vi, em, literalmente, todas as cenas. Deve ser dos filmes em que mais se fuma, mais ainda do que os originais noir que serviram de inspiração. E que bem que se fuma neste filme, é uma beleza...
Tal como este Nick Cave, cheio de pinta, a destilar pinta, diria até, é também uma beleza, a cantar Stagger Lee.
O artista que é um bom artista, mesmo que tente, nunca consegue deixar de ser bom. E, como diz Truman Capote, se isso é uma vantagem, também não deixa de ser um chicote, permanente a exigir mais.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Este blog faz um aninho... oh, coisa má fofa.
Tentei mudar as cores, o fundo, o template, para comemorar, mas não deu. Gosto como está, não me conseguiria habituar a outra coisa. Espero que consiga durar mais um ano; gosto da passadeira desta Rua.

A elite, esse papão

Uma vez, numa discussão entre "amigos" sobre o Processo de Bolonha, fui instada a dar a minha opinião; disse que as universidades deviam promover o saber pelo saber. Respondeu-me um "amigo": "a tua perspectiva é elitista e estúpida". Eu, que não sou pessoa de levar desaforo para casa, como dizem os nossos companheiros brasileiros, encetei uma bulha e criou-se ali um escarcéu. Mas no fim tudo se resolveu.
Aquilo que me irrita profundamente é evocar-se "elitismo" e "elite" como se fossem coisas nefastas para o país, quando o problema deste país, de qualquer país, é o não ter elite de qualquer espécie. O que me parece é que, quando as pessoas despendem o seu latim a vilipendiar o elitismo e a elite, é na verdade em algo semelhante à plutocracia que estão a pensar. O problema resolve-se muito facilmente com um objecto, que deveria ser de uso diário, designado comummente por "dicionário".
As elites, um grupo de pessoas de excelência, que são superiores pelo mérito e pela qualidade intelectual ou técnica que detêm (não pelo poder, pelo dinheiro ou pelas cunhas) - sublinho a palavra mérito - são essenciais. Qualquer país precisa de alguém que estabeleça padrões educacionais, culturais, civilizacionais, até. E nem todos estão em condições para o fazer, pura e simplesmente. Temos todos os mesmos direitos, somos todos seres humanos dignos e respeitáveis, mas há pessoas que, pura e simplesmente, são melhores do que nós. E estas pessoas, esta tão odiada "elite", seriam aqueles que, ao invés de nivelar por baixo, como se costuma dizer, estabeleceriam padrões de exigência tais que o nível estaria sempre nos píncaros.
Não é o que se passa neste jardim à beira-mar plantado, da mesma forma que não é o que se passa nos outros países europeus que conheço minimamente (não são assim muitos, digo já). Políticos, intelectuais, escritores, a "inteligência" em geral, foi para o estrangeiro, ou vive na semi-obscuridade. Quem alcança relevância mediática ou profissional é, na maior parte dos casos, ou mediano, ou pura e simplesmente medíocre. E isto é aceite por todos porque se pensa, erradamente, deturpadamente, que a democracia é isto, quando nunca ninguém disse que a democracia é o poder da mediocridade. E o que se devia dizer é que este ódio às elites e a recompensa outorgada aos medíocres é a derrocada de qualquer futuro.
A hegemonia da mediocridade está bem à vista, tendo chegado já há muito às escolas e, até, à única instituição onde nunca poderia ter chegado, com consequências desastrosas - a universidade.
Por isso, aquilo que eu desejo para 2010 é que este país consiga ter uma elite digna desse nome.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Melhor Blogger Hipotético: Leonard Woolf


22nd March 1941

Oh, woman, please do shut up, do shut your big, massive gob, please do!
No. No such luck. Here she comes again (if I have to listen to that whinning little voice of hers one more time , "Lenny, I hear voices", "Lenny, I can't write today", "Lenny, I am a dreadful housewife, do you not think so?", "Lenny, I say, for the life of me I am at a loss with Mrs Dalloway, what shall she do after buying the flowers, I simply cannot fathom, perhaps a trip to a lighthouse...", the way she babbles on, oooooooh!). Now she is telling me she cannot write. Again.
Of course you can't, dear. You're too busy bothering me with that appaling depression of yours. I am not a doctor, helloo-O!
And this bloody war going on... what is happening to my people?

25th March 1941

Right. I am a busy man. Busy and concerned. I am deeply concerned with the faith of my people in "Europe", for example (what a ghastly place - I dare say, every gentleman ought to have been born a British man). So, I do have all these worries.
And this woman gives me no peace. I cannot work. I cannot print my pamphlets. All my life is now devoted to her needs, her writing, her thoughts... oh, God.
For example, the other day. She made me read the rubbish she was writing. I could not follow a bloody sentence! I do not know what she is on about half the time! This woman just ignores the meaning of "punc-tua-tion". But of course, I could not tell her that, oh God, no, we wouldn't want another of her fits, would we?, so I just told her, "This is all quite lovely, Ginnie, old girl, but perhaps a comma or two, a stop or two, wouldn't hurt?" Even this harmless remark made her cry. Hours spent trying to appease her... oh, what to do!
If only I could go back to living alone, without "her"... I need to help with the war effort somehow, I can't have her breathing down my neck, she and her "depression".

27th March 1941

I have had what I believe is just about the most brilliant idea any man in my situation could have had. The most brilliant idea! Now, Ginnie is depressed, everybody knows that - what if something happens, something that... if she had a crisis... I could put stones in her pockets...

29th March 1941
Oh, the grief.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Diário deprimente da pessoa impotente



Abri a caixa de email e o único email novo que tinha era:
"A Mega TV & Eddy sugerem-lhe: que prendas vai dar no Natal?". Não respondi porque não sei quem são a Mega TV e o Eddy.
Depois, fiquei em casa à espera que alguém me telefonasse. Verifiquei se o telefone estava a funcionar. Estava.
Verifiquei se o telemóvel tinha bateria. Tinha.
Fui ao facebook. Não tinha mensagens novas nem comentários. Fui ver a quinta, o café, o yoville. Preenchi mais meia-hora do meu tempo.
Depois, enquanto permanecia em casa e esperava que o telefone tocasse, revi as coisas que teria de fazer no trabalho, no dia seguinte. Ficou tudo visto e revisto.
Verifiquei se o telemóvel tinha bateria. Tinha.
Verifiquei se o telefone estava a funcionar. Estava.
A medo, não fosse o telefone tocar, decidi ir tomar café. Levei o telemóvel comigo, não fosse alguém precisar de me contactar. Tomei café. Pedi também um croissanzinho minúsculo, com docinho de ovo.
Fui a casa ver se tinha chamadas não atendidas. Não tinha. O telefone estava a funcionar. Verifiquei o email. Ponderei responder à Mega TV e ao Eddy. A minha mãe diz que eu tenho de aprender a fazer amigos e a ser sociável.
Como ninguém precisava, pelos vistos, de falar comigo, fui ao supermercado comprar bombons e gelado. Voltei rapidamente para casa.
Nada de chamadas não atendidas.
Suspirei.
Bebi água.
Voltei a ler o email da Mega TV e do Eddy.
Abri uma lata de atum. Foi o meu jantar.
Sentei-me no sofá da sala e percorri todos os canais de televisão em dois minutos. 57 channels and nothing on, como diz o Bruce Springsteen. Sou uma pessoa cheia de referências.
(o telemóvel silencioso tinha bateria)
Voltei ao facebook. Não havia mensagens novas, nem comentários novos, nem amigos novos. Fui à quinta, apanhei os legumes, subi de nível. Fui ao café, servi os pratos, subi de nível. Voltei ao perfil. Tudo igual.
(o telefone estava a funcionar)
Estava tão cansada.
Voltei ao email. Quem será o Eddy, onde ficará a Mega TV?
Fui dormir. Adormeci logo, surpreendentemente, de tão cansada que estava.
O telemóvel, esse, tocou finalmente. Era o alarme do despertador.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Bulhão Pato & Gomes de Sá

Apetecia-me escrever sobre livros (porque não vou poder ir ao debate na Bertrand, esta quinta-feira, sobre livros-fenómeno, apesar de tudo o que tenha a moderação de Anabela Mota Ribeiro, lamento muito e peço muita desculpa, me suscitar grande desconfiança, e apesar também de já não conseguir suportar a crítica fácil ao Dan Brown, só nisto o Expresso gastou três artigos este fim-de-semana, já se sabe que Dan Brown é mau escritor e que as suas personagens são risíveis, mas sinceramente, não é o único, nem sequer o pior, e além disso, parece-me a mim, a maior crítica, e a mais grave, que se pode fazer a este indivíduo é a grande desonestidade intelectual que ostenta, porque, sejamos honestos, quem de facto acreditar na existência do Priorado do Sião tem de ter um qualquer problema mental seriamente incapacitante, talvez Dan Brown de facto padeça disso, mas enfim, o que será pior, Dan Brown e as suas mentiras parvas a ritmo acelerado, ou alguém como o João Aguiar, que é uma pessoa respeitável, se ter dado ao trabalho de escrever um livro meio paródia, meio crítica, ao Código Da Vinci, com coisas como o Priorado do Cifrão pelo meio, mas o que é isto?, sinceramente, as pessoas às vezes perdem a noção com estas fúrias desproporcionadas contra os tais livros-fenómeno).
Lá querer escrever sobre livros, queria. No entanto, e incontornavelmente, só me vêem à cabeça os nomes estranhos da culinária portuguesa e as mistelas que apresenta, quase todas muitíssimo boas, mas sem dúvida muito estranhas:
Feijoada de choco.
Ovo "a cavalo".
Bitoque.
Abatanado.
Bifana.
Arroz à valenciana.
Bacalhau à Zé do Pipo.
Chouriço.
Bica.
Arroz malandrinho.
Rissol (se há vocábulo que me faça rir, é sem dúvida este - rissol; no entanto, dizer que nada tenho contra a natureza do género alimentício, que um rissolinho de camarão quentinho, a estalar, ui, é daqui, como se costuma dizer, e agora estou a fazer aquele gesto tão parvo que até envergonha que é apertar o lóbulo da orelha entre os dedos - mentira, nunca faço este gesto).
Bá-bá (é um bolo, descobri há uns anos).
Chispe.
Sandocha e mini, ou "sande" e "mine" (estas já são clássicas).
Não sei porque é que eu, querendo escrever um post minimamente inteligente, só me consigo lembrar disto. Talvez porque a língua portuguesa tenha maravilhas que a própria maravilha desconhece, e nada lhe escapa.